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  • Foto do escritorLúcia Lemos

Um conto inesperado

Todo escritor precisa treinar. Esta é uma verdade absoluta.

É muito audacioso começar a carreira de escrita com uma saga. Qualquer escritor experiente dirá que é preciso treinar com histórias menores como crônicas, contos ou até mesmo fanfictions. Eu sentia que a escrita de Aika tinha que melhorar, então, tentei treinar escrever histórias paralelas. Já tinha algumas ideias perdidas entre anotações antigas.

No final de 2019, frequentei um grupo com autores da editora Pendragon, onde surgiu um desafio de escrever sobre "amazonas" e "guerreiros". Eu queria participar, pois poderia virar uma antologia. Já tinha elaborado um rascunho, uma história sobre um rapaz prisioneiro tentando se libertar e enfrentar um rei tirano. Era clichê, porém, por que não tentar?

Foi quando estourou a pandemia no começo de 2020 e tudo ficou confuso. Mas o pior, em fevereiro de 2020, foi acordar com a notícia da morte de uma artista que eu realmente admirava.





Qinni era uma artista que trabalhava com aquarela e pintura digital. Também usava traço mangá, temas fantásticos, estrelas e peixinhos dourados com muito neon e brilhos fofos. Foi uma amiga da faculdade que me apresentou o Instagram da Qinni, me dizendo "Lúcia, ela também desenha com dor". Isso foi em meados de 2016, quando eu nem sabia que tinha fibromialgia, mas estava destruídas por dores, até então, sem explicações. Qinni tinha uma saúde frágil e enfrentou cirurgias de coração. Era comum que ela sumisse. Às vezes aparecia nos stories dentro de um hospital. Desenhava de forma linda, mas suas personagens apareciam chorando muitas vezes. Ela tinha uma cicatriz no peito e a desenhava com flores ou estrelas. Qinni não só desenhava com dor, ela transformava sua dor em arte.




Perdi a conta de quantas vezes senti dor enquanto segurava um lápis, e depois pensava "a Qinni desenharia". Era comum que minha depressão me causasse episódios de raiva, querendo desenhar monstros e guerras épicas. Qinni no entanto, parecia me acalmar com suas ilustrações gentis mesmo sofrendo. Com o diagnóstico da fibromialgia em 2017, decidi que tentaria seguir os passos dela. Transformar minha dor em arte. Até planejei uma série de ilustrações sobre como é viver com fibromialgia.

Em meados de 2019, Qinni foi diagnosticada com câncer. Os médicos lhe deram um ano de vida.

Quase não acreditei. Chorei. Chorei mais ainda quando ela postou um desenho sobre isso, de uma figura negra perseguindo-a e ela chorando. E eu não podia fazer nada pra ajudá-la.


Assinei seu Patron, que era um dólar por mês na época, pra pelo menos dar uma força com seu tratamento, já que ela não podia trabalhar. Li que até sua mãe largou o trabalho pra cuidar dela, e como isso a entristecia. Mandei, junto com milhares pessoas, mensagens para motivá-la. Nem sei se ela viu quando disse que eu a seguia, desenhando inspirada por ela. Vi seus rabiscos no hospital, seus desenhos delicados e li seus relatos de tristeza. Ela queria usar esse último ano para finalizar desenhos antigos e fazer um livro.


Nem isso ela pôde fazer. Ela morreu meses antes do que haviam previsto. Estes foram seus últimos desenhos.


A história que eu estava elaborando para a Pendragon simplesmente sumiu. Até as ideias para Aika desapareceram da minha mente. Por três dias, eu estava perdida num turbilhão de emoções. Uma delas gritava muito alto: indignação.

Por que Qinni morreu de câncer? Por que, depois de anos ajudando a comunidade artística, isso tinha que acontecer? Já não bastava sua dor pelos problemas de coração, que vez por outra a impedia de desenhar? Já não bastava as dificuldades comuns de ser artista? Aliás, era até irônico ver milhões de pessoas emocionadas com suas belas ilustrações, mesmo que a maioria das vezes fossem protagonizadas por uma menina chorando. Ela chorando. E mesmo assim, Qinni continuou desenhando, ajudou várias pessoas com seus tutoriais e nos fazia rir com seu bom humor nas publicações que postava sempre que podia.

Por quê? Por que, logo ela, tinha que morrer assim?

Um presidente aprisionou crianças refugiadas em gaiolas separadas dos seus pais. Estamos sendo governados por um amante de torturador de mulheres e crianças. Terroristas continuam tirando mães de seus filhos e meninos e meninas que só querem ir para escola continuam sendo baleadas por causa da cor de sua pele. Por que essas pessoas cruéis não têm câncer? Por que estes monstros continuam vivos, e não as pessoas gentis que admiramos? Respostas com teorias cristãs, kardecistas e etc. só me deixam ainda mais triste. Nenhuma resposta nos é dada. Nada a traria de volta e nem consigo imaginar a dor de sua família.

Por isso eu tive que escrever. Tive que escrever. Era isso ou sufocar.

Paralelamente, naqueles meses eu estava muito fissurada no mangá "Atelier of Witch Hat", de Kamome Shirahama. Um mangá mais do que belíssimo; ele trazia uma ideia linda: magia criada a partir de desenhos. Não é um pseudo sangue bruxo que lhe dá poderes. Nesse mangá, qualquer um pode fazer magia, basta treinar muito e entender como combinar os símbolos para os encantos e usar um nanquim especial. Mesmo assim, a sociedade precisou ser dividida, pois se qualquer um pode fazer magia, qualquer um pode fazer por mal. Uma construção do mundo fascinante e escrita/ilustrada por uma artista formidável. Eu já gostava muito da ideia de desenhos que criassem vida, seja com o Sai de Naruto e alguns vilões que apareceram em Inuyasha e outros mangás. Atelier of Witch Hat, pra mim, foi a melhor história com esse tema.

Desenhar é algo importante demais para mim, algo que vai além do ganha pão. E foi naqueles três dias de luto que meu cérebro deu - literalmente - um estalo ao rever uma animação que Qinni tinha feito anos atrás.


O curta Night Light é muito fofo. Ele traz uma personagem criando peixinhos mágicos, um dos temas favoritos da Qinni. Só que, ao se distrair, a personagem esquece de desenhar o olho de um deles, e ele sai voando batendo nas paredes. Ela tem que correr para desenhar esse olho para o peixinho conseguir voar.

Quando eu reassisti esse curta enquanto passeava pelas artes da Qinni no site Deviant Art, surgiu na minha mente uma ideia: e se houvesse um povo como esse poder? Uma nação, pessoas que poderiam criar seres vivos, mas que tinham que tomar cuidado para que eles não desenhassem criaturas com pequenos defeitos que prejudicassem seu desenvolvimento?

Meu cérebro, antes congelado de tristeza, voltou a vida e trabalhou a mil. Fui lavar a louça e voltei para meu escritório com várias ideias: mas tudo que eles desenham ganharia vida? Se sim, como treinariam? Talvez uma tinta especial que ajudaria? Ou um papel? E se eles pudessem criar mundos inteiros? Se há tantas criaturas no universo, poderia existir uma escola que ensinasse isso a eles? Com especializações, quem sabe, uma de criaturas marinhas? Uma de insetos? Uma especialização em mamíferos e etc.?

Nunca escrevi uma história tão rápido. O que parecia uma fanfic de Witch Hat com Night Light foi ganhando contornos e inspirações diversas, que iam de Harry Potter a CLAMP. Ainda não havia nesses mangás o elemento de "criar seres vivos", o que me dava abertura para fantasiar ainda mais. Não sei se isso torna meu conto uma fanfic, mas nascia "O pintor de Estrelas" e eu PRECISAVA terminá-lo. Se era pra lidar com a morte da Qinni, ainda não sei. Só queria terminar e colocar toda aquela enxurrada de ideias e sentimentos pra fora. Um conto onde cada palavra guarda meu amor ao ato de desenhar e o desejo de que ninguém se esquecesse da Qinni. Uma vez li em Eragon uma reflexão do protagonista, de que livros serviam para tornar pessoas imortais, já que as histórias continuariam existindo depois da morte de seu autor.

A protagonista nasceu sem qualquer ficha de personagem e sua amiga também. Porém, por mais fofa que a história estivesse, mesmo com meu corpo doendo absurdamente pelo tempo (e velocidade) com que estava digitando, eu tinha me esquecido uma coisa: o tema da coletânea para a Pendragon precisava falar de "guerreiros e amazonas", ou algo assim. E o prazo de entrega estava próximo.

Isso ficou me perturbando de um jeito que eu nem conseguia dormir. Por um lado, um conto inteiro contando sobre aquele mundo e duas garotinhas estudando desenho poderia ficar um pouco monótono. Não é todo mundo que curte descrições longas e construções de nações inteiras. Um pouco de ação não cairia mal.


Para caber naquele briefing , minha protagonista deixou de ser uma versão fofa da Qinni para uma amiga dela. Elsa foi o primeiro nome que veio e ela é minha primeira protagonista que não gostava tanto de estudar e era mais moleca. Aika e Kurikara são dois nerds cada um em seu mundo, e achei legal mudar um pouco. Qinni virou a pequena Kin, que desenhava lindamente e era sucesso da escola, mas tinha a saúde frágil. Elsa, com seu jeito meio torto de criança tenta protegê-la quando pode. Era mais uma história de uma pessoa tentando salvar um amigo como em Aika, não posso negar. Como um treino para continuar minha saga, e uma forma de por meus sentimentos pra fora, achei que valia a pena tentar. E ainda poderia espalhar a história e o trabalho da Qinni para pessoas que não a conheceram.

Contudo, a pandemia e outras questões foram adiando o projeto de antologia, e todos os autores participantes concordaram em publicar suas histórias por fora. Eu poderia ter liberado essa história em março de 2020, mas não consegui. É melhor ser sincera do que mentir: tenho medo do que as pessoas vão achar desse conto. Dele e de outros que tenho rascunhado. Em 2019 sofri ataques de "fãs" de Aika que não aceitaram o andamento da saga, algo que doeu muito. Meu espírito rebelde que lançou Aika em 2016 mesmo contra tanto preconceito estava cansado. Talvez ainda esteja...

No final de 2020 aconteceu tanta coisa, que não sei como, me lembrei desse conto. Acho que estava olhando notícias sobre Art Nouveau, um dos meus movimentos artísticos favoritos. Estou vivendo um momento de reavaliação do meu trabalho. Um desejo de reforçar o quanto amo mangás e tentar absorver mais dos meus artistas preferidos. Foi quando vi que, em fevereiro, faria um ano que a Qinni se foi, e nem pude dizer a ela o quanto me ajudou e o quanto desejei que ela ficasse bem.


Bom, aqui estamos. O Pintor de Estrelas foi revisado por meus amigos e será publicado em cinco partes, toda sexta no Wattpad. Espero que goste deste humilde conto nascido de uma salada de sentimentos e inspirações fantásticas. Uma história de uma garotinha que faria qualquer coisa pra salvar sua amiga. Será que ela vai conseguir?


Enquanto isso, busque no Instagram e na internet pela Qinni. É fácil encontrá-la e sei que também irá se apaixonar pelo trabalho e pessoa que ela era. Se houver internet e minhas historias continuarem a existir mesmo depois que eu morra, ao menos saberei que, apesar de não ter conseguido fazer nada para manter a Qinni viva, consegui de um jeito mantê-la viva através de uma história sobre magia e amizade.





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